Rastros Identitários
O projeto se inicia quando começo a me questionar à respeito das questões da memória cultural, sobre as características identitárias de uma determinada comunidade, onde, num contexto histórico, são impregnadas um conjunto de eventos culturais que definem a identidade dessa sociedade. A memória cultural se desenvolve justamente nesses aspectos de identidade e auto-percepção do indivíduo enquanto parte integrante de determinada comunidade. Essas características são percebidas quando um indivíduo, que carrega consigo uma carga cultural de sua comunidade, se depara com uma outra cultura, que se desenvolve a partir de outros contextos históricos e sociológicos, que diferem do seu contexto. Para ilustrar as questões da memória, utilizo do conceito de rastro de Emmanuel Lévinas, que está relacionado à uma "presença ausente", algo que já não está mais, mas que deixa suas marcas, sejam elas visíveis, táteis, sejam "invisíveis", num campo mais etéreo. Memória é vista aqui como algo em constante transformação, algo solúvel, perecível ao tempo, onde o que resta são apenas os rastros. "A faculdade de atestar o que foi, de reter o que se desvanece é a memória. A memória é constitutiva da condição humana: desde sempre temos nos ocupado em produzir sinais que permaneçam mais além do futuro, que sirvam de marca da própria existência e que lhe deem sentido." (STRELCZENIA, 2001). Tais aspectos, posso equiparar ao contexto da memória cultural, onde a sociedade, mesmo com uma carga histórica impregnada, está sujeita à pequenas (quando se colocada num âmbito histórico), porém constantes modificações. Essas mudanças são vistas pela constante evolução humana, mas principalmente tecnológica, com as quais as sociedades sofrem os impactos que transformam suas características. "A vida é em essência movimento e transformação. Mas apenas podemos tomar consciência do movimento em comparação com o que permanece imóvel." (STRELCZENIA, 2001).
Me aproprio dos conceitos de Hélio Oiticica no trabalho dos Parangolés, sobre a obra que acontece fora do ambiente dos museus, em que a "tela em branco" ganha vida a partir do corpo como base. Nesse projeto, o conceito ganha vida também a partir do corpo inserido, mas num sentido de esconder a identidade, visto que a fisionomia do rosto está diretamente associada às características culturais do indivíduo.
Como a performance acontece num ambiente cultural onde a identidade se encontra em suas raízes afro-brasileiras (no caso, o trabalho final acontece na cidade de São Félix do Paraguassu/BA), me aproprio também do mito do candomblé, sobre o homem ser criado a partir do barro. Então, por cima do pano branco, acrescento uma espécie de máscara de argila, num sentido de uma identidade que é construída a partir de determinadas características de uma cultura. Ou seja, esse indivíduo tem sua própria carga cultural, que ficam resguardadas intrinsecamente, e se sujeita a aderir nova carga cultural, para desenvolver uma formação identitária intercultural.
Então, com essa máscara, me disponho na orla de São Félix (BA), num momento do dia em que as pessoas seguem com seu cotidiano, com suas caminhadas, as crianças brincando, e nesse momento experimento um movimento lento, que trago de minhas experiências com o Butoh. Essa arte é uma dança criada pelos japonezes Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, no contexto da história pós Segunda Grande Guerra, como uma forma de expressão sobre os rastros humanos causados pelos bombardeamentos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Utilizo dessa forma de expressão num sentido de ilustrar os aspectos intrínsecos do individuo com uma cultura que vai numa direção oposta aos aspectos culturais afro-brasileiros (esses representados pela máscara de argila). Sendo assim, crio um diálogo sobre o indivíduo e sua carga intrínseca e a construção de uma identidade a partir da memória cultural.
Justificativa:
Como importante difusor cultural, o projeto vai desenvolver um diálogo à respeito da interculturalidade para a formação da identidade individual e sua repercursão num âmbito social. Uma vez que as diferenças culturais são pontos que ainda criam tensões em muitos ambientes, pretendo sensibilizar o olhar do espectador para uma perspectiva de multidiversidade cultural, que não aparece apenas nas características físicas, mas que são intrínsecas ao ser humano, que perpassa pela missigenação de gerações diversificadas, principalmente no que diz respeito à brasilidade. Ao propor uma discussão sobre as questões da memória cultural, pretendo não somente levar em consideração as deficiências sofridas no decorrer da história social, mas, principalmente, abrangir as transformações geradas a partir de uma miscigenação cultural. Procuro, dessa forma, atingir uma visão menos taxativa e restritiva e mais abrangente e cultural, observando essas questões intrínsecas de uma formação diversificada.
Série: O Outro. Fotos: Ary Rosa
27.03.2014; São Félix, Bahia
Referências:
- Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, Butoh.
- Marta Soares, Vestígios. 2012;
- Élcio Rossini, Bestiário. 2009;
- PESCUMA, Cristina e PASQUALI, Lanussi. A arte contemporânea e o pensamento da diferença. Bahia, 2013;
- STRELCZENIA, Marisa. Foto e memória - a cena ausente. Buenos Aires, 2001;
- COTTON, Charlotte. A Fotografia como Arte Contemporânea. São Paulo, 2010;
- HADDOCK-LOBO, Rafael. Da existência ao Infinito: Ensaios sobre Emmanuel Lévinas. São Paulo, 2006.
Agradecimentos especiais: Ary Rosa, Glenda Nicácio, Flávia Pedroso e Valécia Ribeiro
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