domingo, 30 de março de 2014

O OUTRO

Rastros Identitários

O projeto se inicia quando começo a me questionar à respeito das questões da memória cultural, sobre as características identitárias de uma determinada comunidade, onde, num contexto histórico, são impregnadas um conjunto de eventos culturais que definem a identidade dessa sociedade. A memória cultural se desenvolve justamente nesses aspectos de identidade e auto-percepção do indivíduo enquanto parte integrante de determinada comunidade. Essas características são percebidas quando um indivíduo, que carrega consigo uma carga cultural de sua comunidade, se depara com uma outra cultura, que se desenvolve a partir de outros contextos históricos e sociológicos, que diferem do seu contexto. Para ilustrar as questões da memória, utilizo do conceito de rastro de Emmanuel Lévinas, que está relacionado à uma "presença ausente", algo que já não está mais, mas que deixa suas marcas, sejam elas visíveis, táteis, sejam "invisíveis", num campo mais etéreo. Memória é vista aqui como algo em constante transformação, algo solúvel, perecível ao tempo, onde o que resta são apenas os rastros. "A faculdade de atestar o que foi, de reter o que se desvanece é a memória. A memória é constitutiva da condição humana: desde sempre temos nos ocupado em produzir sinais que permaneçam mais além do futuro, que sirvam de marca da própria existência e que lhe deem sentido." (STRELCZENIA, 2001). Tais aspectos, posso equiparar ao contexto da memória cultural, onde a sociedade, mesmo com uma carga histórica impregnada, está sujeita à pequenas (quando se colocada num âmbito histórico), porém constantes modificações. Essas mudanças são vistas pela constante evolução humana, mas principalmente tecnológica, com as quais as sociedades sofrem os impactos que transformam suas características. "A vida é em essência movimento e transformação. Mas apenas podemos tomar consciência do movimento em comparação com o que permanece imóvel." (STRELCZENIA, 2001).

 Me aproprio dos conceitos de Hélio Oiticica no trabalho dos Parangolés, sobre a obra que acontece fora do ambiente dos museus, em que a "tela em branco"  ganha vida a partir do corpo como base. Nesse projeto, o conceito ganha vida também a partir do corpo inserido, mas num sentido de esconder a identidade, visto que a fisionomia do rosto está diretamente associada às características culturais do indivíduo.



Como a performance acontece num ambiente cultural onde a identidade se encontra em suas raízes afro-brasileiras (no caso, o trabalho final acontece na cidade de São Félix do Paraguassu/BA), me aproprio também do mito do candomblé, sobre o homem ser criado a partir do barro. Então, por cima do pano branco, acrescento uma espécie de máscara de argila, num sentido de uma identidade que é construída a partir de determinadas características de uma cultura. Ou seja, esse indivíduo tem sua própria carga cultural, que ficam resguardadas intrinsecamente, e se sujeita a aderir nova carga cultural, para desenvolver uma formação identitária intercultural.




 Então, com essa máscara, me disponho na orla de São Félix (BA), num momento do dia em que as pessoas seguem com seu cotidiano, com suas caminhadas, as crianças brincando, e nesse momento experimento um movimento lento, que trago de minhas experiências com o Butoh. Essa arte é uma dança criada pelos japonezes Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, no contexto da história pós Segunda Grande Guerra, como uma forma de expressão sobre os rastros humanos causados pelos bombardeamentos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Utilizo dessa forma de expressão num sentido de ilustrar os aspectos intrínsecos do individuo com uma cultura que vai numa direção oposta aos aspectos culturais afro-brasileiros (esses representados pela máscara de argila). Sendo assim, crio um diálogo sobre o indivíduo e sua carga intrínseca e a construção de uma identidade a partir da memória cultural.




Justificativa:
Como importante difusor cultural, o projeto vai desenvolver um diálogo à respeito da interculturalidade para a formação da identidade individual e sua repercursão num âmbito social. Uma vez que as diferenças culturais são pontos que ainda criam tensões em muitos ambientes, pretendo sensibilizar o olhar do espectador para uma perspectiva de multidiversidade cultural, que não aparece apenas nas características físicas, mas que são intrínsecas ao ser humano, que perpassa pela missigenação de gerações diversificadas, principalmente no que diz respeito à brasilidade. Ao propor uma discussão sobre as questões da memória cultural, pretendo não somente levar em consideração as deficiências sofridas no decorrer da história social, mas, principalmente, abrangir as transformações geradas a partir de uma miscigenação cultural. Procuro, dessa forma, atingir uma visão menos taxativa e restritiva e mais abrangente e cultural, observando essas questões intrínsecas de uma formação diversificada.





Série: O Outro. Fotos: Ary Rosa
27.03.2014; São Félix, Bahia 

Referências:
 - Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, Butoh.
 - Marta Soares, Vestígios. 2012;
 - Élcio Rossini, Bestiário. 2009;
 - PESCUMA, Cristina e PASQUALI, Lanussi. A arte contemporânea e o pensamento da diferença. Bahia, 2013;
 - STRELCZENIA, Marisa. Foto e memória - a cena ausente. Buenos Aires, 2001;
 - COTTON, Charlotte. A Fotografia como Arte Contemporânea. São Paulo, 2010;
 - HADDOCK-LOBO, Rafael. Da existência ao Infinito: Ensaios sobre Emmanuel Lévinas. São Paulo, 2006.  


Agradecimentos especiais: Ary Rosa, Glenda Nicácio, Flávia Pedroso e Valécia Ribeiro 

sábado, 15 de março de 2014

"A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", de Walter Benjamin, 1955

Neste texto, Benjamin procura discutir sobre as possibilidades da reprodução da obra de arte. É certo que sempre se pode reproduzir ou imitar arte. Porém, a reprodutibilidade técnica surge como um novo processo, uma nova possibilidade.A xilogravura, por exemplo, vai tornar possível a reprodução em série de desenhos, muito antes da imprensa direcioná-lo para a escrita. Do mesmo modo, a litografia permite que haja um aprofundamento na produção em massa, assim como nas novas formas de criação.Já com a fotografia, as técnicas vão ganhar um novo ponto de partida. A mão deixa de ter a responsabilidade artística nesse processo de reprodução da imagem, sendo substituída  pelo olho. Posteriormente, com a reprodução técnica do som, o cinema vai conquistar uma posição de maior abrangência entre as obras de arte tradicionais.

Entretanto, um importante elemento é deixado de lado, o que Benjamin chama de "o aqui e agora de obra de arte". Com a reprodutibilidade técnica, perde-se o instante, as mudanças permeadas pelo tempo, as sensações transmitidas pela obra. Sua identidade e autenticidade estão na vivência presencial. Por outro lado, a reprodução técnica tem a possibilidade de acentuar certos aspectos característicos da figura original, além de capturar imagens que ultrapassam as capacidades visuais do homem, de dispor os objetos em situações diversas, e de aproximar as pessoas da obra (mesmo que não seja de modo literal). A reprodução técnica vai atualizar, fazer reviver as obras tradicionais. Mas é justamente a tradição que se perde. A autenticidade da obra de arte, sua aura, sua essência são, discretamente, deixadas de lado. "A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico." (p. 02). O que ocorre, é uma espécie de desvalorização deste "aqui e agora", uma liquidação da herança e tradição cultural.

Os aspectos organizacionais do homem em seu processo histórico/cultural, condizem diretamente com as mudanças no campo da percepção. O declínio da aura da obra transita por esses modos de percepção, uma vez que essa figura é sentida na forma de tempo e espaço, e a relação com suas reproduções técnicas partem para um campo mais atemporal, e para uma difusão voltada para os movimentos em massas. A moeda de troca surge da necessidade e preocupação, por parte dessas massas técnico-reprodutoras, de transmitir uma semelhança tão fiel às características originais, que, com a capacidade de captar essa esfera sensorial, existe uma aproximação, uma troca quase íntima do espectador com a aura da obra tradicional em sua unicidade. “Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição.” (p.03)

E quando se fala de uma autenticidade aurática, deve-se relacionar às questões tradicionais ritualísticas da obra de arte desde os seus primórdios. A obra em si, por um longo período histórico, tem sua autenticidade diretamente relacionada à funções ritualísticas, que se transformam também junto das metamorfoses da percepção humana. Elas permanecem num sentido teológico, mesmo com as movimentações profanas e com o advento da arte pela arte. Mas com a reprodutibilidade técnica, a arte finalmente vai se emancipar desse laço com o ritual, autenticando sua aura no movimento político.

Como forte exemplo dessa movimentação, a introdução do cinema falado atinge não somente o estímulo do público a voltar a frequentar as salas cinematográficas, mas em maior escala, atinge os interesses nacionais quando a produção cinematográfica utiliza de maiores recursos técnicos e industriais, e, consequentemente, capitais.

Walter Benjamin discorre sobre a obra de arte analisando dois pólos específicos, dentre vários aspectos: a obra com valor culto e a obra com valor de exposição. A primeira, já apresentada anteriormente, diz respeito à produção de cunho ritualístico, místico e espiritual, e existe aqui, uma preocupação em mantê-las restritas apenas para esse fundamento. Já o valor exposicional, advém de uma emancipação da obra de arte para com esses cânones. As obras deixam de ser restringidas, para expandir-se no que diz respeito à sua exposição, atingindo assim uma grande massa de espectadores. Com a reprodutibilidade técnica, esse valor de exposição toma tão grandes proporções, de forma que surge aqui questionamentos sobre as funções até então vistas apenas como artísticas, e que poderiam ser vistas como acidentais. De fato, é perceptível que os meios técnico-reprodutíveis tenham seu valor exposicional gerado de forma acidental por sua própria composição. Mas é justamente essa composição, desenvolvida para fins artísticos, que definem as funções como sendo de cunho necessariamente artístico.

Essa transformação de valores é sentida na fotografia, quando o homem se retira da imagem fotográfica, fixando apenas os locais característicos de influências humanas, uma vez que os valores de culto eram sentidos, aqui, na expressão da aura,  proporcionada através da fotografia de rostos de pessoas.

A obra de arte, antes concebida como culta, com a era da reprodutibilidade, passa a ter sua imagem num nível de auto-contemplação. Ela se retro-alimenta, uma vez que se encontra direcionada à reprodução em massa, e os processos estéticos ligados à politização da arte. A problemática criada por Benjamin é da relação direta da arte exposicional com o fascismo, mesmo se recorrendo à intencionalidade da “arte pela arte”. Existe uma necessidade de se extrair a arte desse campo, porém os meios funcionais dificilmente vão se separar do campo político. É necessário que se desenvolva um movimento completamente desassociado desses campos, mas, uma vez inseridos e utilizando de recursos completamente relacionados à política, ocorre um enfraquecimento por parte dos movimentos. Por isso essa associação com um fascismo de forte poder sobre essas massas artísticas.